Um a um os mineiros foram saindo. Homem a homem, passo a passo os “enterrados” iam sendo içados das catacumbas, deixando o inferno de San José. Encontravam as famílias, os amigos, abraçavam os heróis de cima que tiravam os de baixo, saiam tensos, filmados pelas câmeras do mundo todo. Eram cenas de um dos momentos mais marcantes desse jovem século XXI. Não cenas de pavor, como foram as registradas em 11 de setembro, mas de esperança, de firmeza, de calor humano.
Saltava aos olhos de todos que os mineiros subiam barbeados, com roupas limpas, cabelos penteados, com lustro de higiene. Algumas pessoas estranharam, outros disseram que a exposição à TV envaideceu os soterrados.
Não acredito nisso. Estou mais propensa a pensar que enquanto se entediavam nos baixios da terra, talvez com um fiapo de luz, talvez uma vela, em grupo, ou sozinhos, eles liam Freud. Isso mesmo, largados sobre o chão talvez tenham lido O Futuro de uma Ilusão ou Mal-Estar na Civilização, obras onde o psicanalista austríaco revela seus conceitos sobre “sublimação”. Talvez tenham percebido que Freud, de maneira impecável, concilia com essa palavra as necessidades do “ego” (“o que eu quero para mim”) com as do “superego” (“o que o mundo externo quer de mim”). Quem sabe leram e gostaram.
Quem sabe não perceberam que quando se preparam para se expor, quando se banham, se arrumam e se lustram, eles estão agradando mais a eles mesmos (ego) do que aos outros (superego). Talvez tenham percebido que a rotina do asseamento faz parte da beleza da vida. Como escreveu o próprio Freud: “o ego adora a rotina”. Certamente que o “ego quer prazer”, leram eles lá embaixo. Mas leram também que o ego é suficientemente “doentio” para não levá-los a higiene ou ao encantamento só para aumentar o prazer, mas principalmente para reduzir o desprazer, que o psicanalista austríaco definiu como algo que tira o ego do normal, que abala o seu equilíbrio.
O banho, a barba feita, a roupa limpa, o cabelo assentado, mais do que qualquer coisa purificam a alma. Um dos mais antigos poemas de língua inglesa (anônimo) chama-se “Limpeza”, e ele promove a exata conexão entre a pureza física e a espiritual. Estar limpo é mais do que desejável, necessário ou ritualístico, é essencial, fundamental, vital. Sempre parece que não estamos prontos quando estamos sujos ou mal-arrumados. Precisamos disso. O poeta francês Francis Ponge escreveu uma obra intitulada Soap (sabão), uma elegia a limpeza: “O exercício de ensaboar o deixará mais limpo, mais puro e com um cheiro mais doce que antes… muda-lo-á para melhor, requalificando-o”. Para Ponge, a limpeza ajuda a criar um novo começo, nos instiga a buscar nossas aspirações, parece que temos de “limpar o que aconteceu antes, como se um ato de destruição sempre tivesse que preceder um ato de criação”.
Aprontar-se, enfim, significa limpar a mente, eliminar o passado maculado, reduzindo os preconceitos para seguir em frente. Os mineiros subiram para um mundo de incertezas, de medos, repleto de aflições e dúvidas. Quando sobem barbeados e limpos, talvez estejam mais prontos para enfrentar a luta, talvez tenham subido renovados, renascidos, ressuscitados… Não importa que não leram Freud, foram salvos, foram dignos, ficaram eternos.
Créditos: http://cultura.updateordie.com/2010/10/14/freud-e-os-mineiros-do-chile/
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